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Decisão do STF que reconheceu união estável homoafetiva completa 10 anos

Dez anos depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter reconhecido a união estável de pessoas do mesmo sexo, ainda não há uma lei que incorpore direitos assegurados pelo Judiciário à população LGBTQIA+. Proposto em 2018 por iniciativa popular, o Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero (PLS 134), um dos últimos projetos apresentados, não saiu do papel. Desde o início de 2019, está sem andamento na primeira comissão.

O texto incorpora as garantias da última década, inclusive a criminalização da transfobia e da homofobia. O STF, em 2019, enquadrou essas condutas como crime de racismo e reconheceu a omissão do Congresso para legislar sobre o assunto. Foram mais de seis anos para a coleta das 100 mil assinaturas necessárias para propor o projeto de iniciativa popular.

Advogados que atuaram no paradigmático julgamento sobre união estável homoafetiva divergem, porém, sobre a necessidade de aprovação de uma lei. Para a responsável por cunhar a palavra “homoafetividade”, a advogada Maria Berenice Dias, uma norma seria essencial para assegurar essas garantias. “É incontestável a conquista da decisão na ADPF 132 [sobre união estável]. A aprovação de uma lei é o caminho a seguir agora”, diz a vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Família (Ibdfam) — uma das sete partes interessadas (amicus curiae) na causa.

Para o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, ainda que sem previsão em lei, não há risco de retrocesso nos direitos dos casais homoafetivos. “O avanço civilizatório nessa matéria chegou em um ponto de não retorno”, afirma.

Em 2011, Barroso ainda atuava como advogado e defendeu a união estável homoafetiva pelo Estado do Rio de Janeiro, autor da ADPF 132. Na avaliação dele, o STF tem cumprido “as duas grandes missões” da Corte, de proteger as regras da democracia e os direitos fundamentais de todos.

Segundo ele, os avanços nos direitos das minorias dependem da Justiça, especialmente em temas controvertidos na sociedade. “Em diversas partes do mundo essas questões são resolvidas pelo Judiciário. Até porque para quem depende de voto o fato de que vai desagradar parte do eleitorado tem custo alto”, diz.

O professor Oscar Vilhena, diretor da FGV Direito SP, concorda. Representante da Conectas Direitos Humanos no julgamento, ele pondera que há exemplos na história de avanços na garantia de direitos que ocorreram por intermédio dos tribunais. “Nos EUA, ainda não há uma emenda na Constituição que prevê o direito das mulheres ao voto. Foi uma construção jurisprudencial.”

O ideal, acrescenta, seria que, ainda que com padrão conservador nos costumes, a maioria da população reconhecesse os direitos da minoria. “Não foi o que aconteceu no Brasil. Tivemos um desfecho condizente com a nossa sociedade. Não acredito que exista fragilidade nisso”, diz.

Os advogados ainda indicam pontos de vista diferentes sobre a resposta que o STF daria atualmente a essa causa. “Tenho dúvidas se a decisão do Supremo seria a mesma caso o julgamento fosse hoje”, diz Maria Berenice. Vilhena é mais otimista. “Não creio que isso vá acontecer, mas se houvesse uma tentativa do atual governo de regressão de direitos por meio do Parlamento, com a proibição do casamento homoafetivo, o Supremo derrubaria a medida no dia seguinte.”

Em 5 de maio de 2011, o STF concluiu o julgamento que reconheceu como entidade familiar a união estável entre duas mulheres ou dois homens. Até então, o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo era tratado em termos de negócios, como uma sociedade de fato em que há um esforço das partes para formação e crescimento do patrimônio em comum.

O resultado favorável ao pedido do Estado fluminense surtiu efeitos pelo Brasil. Nos últimos dez anos, os cartórios oficializaram 21,6 mil uniões estáveis homoafetivas. O ano de pico nos registros foi 2018, com 2.595. O maior volume foi registrado em novembro e dezembro, meses seguintes à eleição de Jair Bolsonaro. Foram 302 e 325, respectivamente. Os dados são do Colégio Notarial do Brasil (CNB).

Entre 2018 e 2019, o Rio de Janeiro — reduto eleitoral da família Bolsonaro — concentrou os maiores registros de uniões homoafetivas. Foram 460 e 427, equivalente a quase 18% e 20% do total nacional, respectivamente.

Apesar da diferença populacional entre os Estados, o Rio seguiu parelho com o Estado de São Paulo no volume de uniões oficializadas em 2020 e nos primeiros meses deste ano. No ano passado, os cartórios fluminenses oficializaram 358 uniões. Os paulistas, 362. Entre janeiro e março deste ano, foram 71 uniões no Rio e 75 em São Paulo.

Do reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo abriu-se as portas para a garantia de outros direitos. Sete meses depois da decisão do STF, em outubro de 2011, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) autorizou o casamento homoafetivo. Em maio de 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) obrigou os cartórios a celebrarem as cerimônias.

“Não sei se era uma ideia dos ministros reconhecer a união estável primeiro. O casamento é uma instituição muito sacralizada, tem esse colorido de natureza religiosa. Parece que a união estável é uma relação de segunda categoria. Nunca se imaginava que imediatamente depois seria possível o casamento homoafetivo”, avalia Maria Berenice.

De 2013 até março deste ano, foram celebrados 54,7 mil casamentos homoafetivos. O pico ocorreu em 2018, ano da campanha presidencial que levou Bolsonaro ao Palácio do Planalto. Naquele ano, foram 9.520 mil casamentos de pessoas do mesmo gênero. O número representou um aumento de 61% nas celebrações em relação com 2017.

Nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro, os casamentos continuaram em patamares elevados se comparado a anos anteriores: 9.056 e 8.472 em 2019 e 2020, respectivamente. “Passada a atmosfera eleitoral polarizada, a curva de crescimento continua elevada demonstrando que há uma consolidação dos direitos por meio do casamento”, afirma Gustavo Fiscarelli, presidente da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Brasil (Arpen), que compila os dados.

Às críticas de invasão do Judiciário na competência do Legislativo em regular as relações homoafetivas, os advogados são unânimes em defender a atuação do STF. “A Corte interpretou a Constituição para preencher as lacunas do legislador”, diz Maria Berenice.

Segundo Vilhena, a decisão do STF veio em um contexto em que a democracia e o Congresso Nacional privaram parcela da população a realizar um direito fundamental em razão da orientação sexual. “Quando se olhar para a história do Supremo será reconhecido que a Corte cumpriu bem a missão de estender aos casais homoafetivos os mesmos direitos e deveres dos heteroafetivos, de realizar seus sonhos e organizar sua vida patrimonial.”

Fonte: Valor Econômico

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