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O acesso à Justiça como direito humano fundamental está previsto expressamente não só na Carta Política brasileira (CF/88, artigo 5º, XXXV), mas em diversos diplomas normativos internacionais. A Resolução nº 2.656, de 7/7/2011, da Organização dos Estados Americanos (OEA) assevera que:

“1. Afirmar que o acesso à justiça, como direito humano fundamental, é, ao mesmo tempo, o meio que possibilita que se restabeleça o exercício dos direitos que tenham sido ignorados ou violados.

3. Afirmar a importância fundamental do serviço de assistência jurídica gratuita para a promoção e a proteção do direito ao acesso à justiça de todas as pessoas, em especial daquelas que se encontram em situação especial de vulnerabilidade.

5. Incentivar os Estados membros que ainda não disponham da instituição da defensoria pública que considerem a possibilidade de criá-la em seus ordenamentos jurídicos” [1].

O Projeto de Florença de Acesso à Justiça, capitaneado pelos professores Mauro Cappelletti e Bryan Garth ainda na década de 70, trouxe conclusões resultaram na divulgação das três primeiras ondas renovatórias de acesso à Justiça [2]. No mencionado projeto, os autores analisaram os obstáculos que dificultam ou obstam o efetivo acesso à Justiça — segundo os autores, obstáculos econômicos, sociais e organizacionais — para, assim, alicerçar que existem marcos na efetivação do acesso à Justiça — ondas renovatórias. O exame das barreiras ao acesso à justiça revela um padrão: os obstáculos existentes nos sistemas jurídicos são mais pronunciados nas pequenas causas e para autores individuais, especialmente os pobres; ao mesmo tempo, as vantagens pertencem de modo especial aos litigantes organizacionais, adeptos do uso do sistema judicial para obterem seus próprios interesses.

Na esteira da obra dos citados autores, a primeira onda diz respeito à assistência judiciária aos pobres, visando à superação dos obstáculos financeiros àqueles que necessitam de acesso à Justiça. Trata-se, realmente, do ponto de partida na busca da efetivação deste direito fundamental, tendo em vista que, como já supramencionado, os obstáculos existentes afetam mais os litigantes individuais e pobres, sujeitos vulneráveis por natureza (podendo ou não serem considerados minorias):

“Medidas muito importantes foram adotadas nos últimos anos para melhorar os sistemas de assistência judiciária. Como consequência, as barreiras ao acesso à Justiça começaram a ceder. Os pobres estão obtendo assistência judiciária em números cada vez maiores, não apenas por causas de família ou defesa criminal, mas também para reivindicar seus direitos novos, não tradicionais, seja como autores ou como réus. É de esperar que as atuais experiências sirvam para eliminar essas barreiras” [3].

A própria criação da Defensoria Pública pelo Estado brasileiro (CF/88, artigo 134) já efetiva a primeira onda de acesso à Justiça.

Quanto à segunda onda do acesso à justiça preconizada por Cappelletti e Garth, esta tem maior correlação com o obstáculo organizacional, razão pela qual se traduz pela busca da proteção de direitos metaindividuais (difusos e coletivos). Esta onda reforçou a reflexão tradicional sobre o papel do processo civil e sobre o papel dos tribunais, passando de uma visão individualista para uma visão macro, coletiva, de resolução de demandas no atacado, quando elas sejam caras a um grupo determinado ou mesmo indeterminado de pessoas, evitando-se com isso a proliferação de ações judiciais e o congestionamento do Judiciário [4].

Já a segunda onda de acesso à Justiça, que se refere à proteção dos direitos metaindividuais — difusos ou coletivos — também possui aporte na atuação da Defensoria brasileira — embasada tanto na lei quanto na jurisprudência dos tribunais superiores. Exemplo disso é a legitimidade da Defensoria Pública para o ajuizamento de ação civil pública (artigo 5º, inciso II, da Lei da ACP, Tema 607 de Repercussão Geral no STF); a possibilidade de impetração de Habeas Corpus coletivo (HC 143.641/SP, STF) e de mandado de injunção coletivo (artigo 12, IV, da Lei do Mandado de Injunção); entre outros.

A terceira onda de acesso à Justiça propõe um novo paradigma ao acesso à justiça: técnicas processuais efetivas e meios alternativos de solução de conflitos. Busca não só facilitar o exercício da jurisdição estatal, mas a prática da educação em direitos e o fomento à autocomposição, o que é desejável. Nessa onda, poderíamos enquadrar a conciliação, a mediação e a arbitragem. Na visão original dos autores [5]:

“Essa ‘terceira onda’ de reforma inclui a advocacia judicial ou extrajudicial, seja por meio de advogados particulares ou públicos, mas vai além. (p.67);

[…] o uso de pessoas leigas ou paraprofissionais, tanto como juízes quanto como defensores, modificações no direito substantivo destinadas a evitar litígios ou facilitar sua solução e a utilização de mecanismos privados ou informais de solução de litígios. […] inovações radicais e compreensivas, que vão muito além da esfera de representação judicial. (p.71);

[…] Ademais, esse enfoque reconhece a necessidade de correlacionar e adaptar o processo civil ao tipo de litígio (p.71).”

No que tange à terceira onda renovatória de acesso à Justiça — a busca de meios alternativos de solução de conflitos —, esta também é cumprida pela Defensoria Pública, inclusive com supedâneo legal. O inciso II do artigo 4º da Lei Complementar nº 80/94 dispõe que é função institucional da instituição promover, inclusive de forma prioritária, a solução extrajudicial dos litígios, visando à composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos. Exemplo prático desta premissa é a execução de projetos que visam incentivar o público alvo da Defensoria a conciliar seus conflitos. A DPE-PI, por exemplo, executou em 2016 o projeto “Defensores pela Conciliação” [6].

Em 2019 Bryant Garth idealizou o Global Access to Justice Project, projeto ainda em desenvolvimento, tratando de mais quatro novas ondas renovatórias à luz dos paradigmas do novo século:

“[…]

4. A ‘quarta onda’ (dimensão): ética nas profissões jurídicas e acesso dos advogados à justiça

5. A ‘quinta onda’ (dimensão): o contemporâneo processo de internacionalização da proteção dos direitos humanos

6. A ‘sexta onda’ (dimensão): iniciativas promissoras e novas tecnologias para aprimorar o acesso à justiça

7. A ‘sétima onda’ (dimensão): desigualdade de gênero e raça nos sistemas de justiça” [7].

O projeto se autodefine como:

“Acesso à Justiça

Uma Nova Pesquisa Global

Por intermédio da colaboração dos maiores especialistas do planeta, representando diversas culturas, disciplinas e nações, o Global Access to Justice Project está reunindo as mais recentes informações sobre os principais sistemas de justiça do mundo, analisando as barreiras econômicas, sociais, culturais e psicológicas que impedem ou inibem muitos, e não apenas os mais pobres, de acessarem e fazerem uso do sistema de justiça. E devido à sua abordagem epistemológica multidimensional única e ao amplo alcance geográfico, o projeto possui a ambição de se tornar a pesquisa mais abrangente já realizada sobre o acesso à justiça” [8].

A quarta onda não possui relação direta com a Defensoria Pública, razão pela qual não se promove comentários ou subsunção nas atuações defensoriais.

A quinta onda, por sua vez, se refere ao processo de internacionalização da proteção dos direitos humanos. Inegável a importância da Defensoria neste ponto. A um, pois a garantia de um defensor custeado pelo poder público como direito do cidadão está prevista no artigo 8.2, alínea “e”, do Pacto de São José da Costa Rica [9], que assevera ser direito irrenunciável do acusado ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, se o acusado não se defender por si só nem nomear defensor no prazo legal. A dois, pois a instituição pode peticionar perante entes internacionais, tais como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, à luz do artigo 44 do Pacto de São José da Costa Rica:

“Qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados-Membros da Organização, pode apresentar à Comissão petições que contenham denúncias ou queixas de violação desta Convenção por um Estado-Parte” [10].

No mesmo sentido, mencione-se a figura do defensor interamericano — DPI. Segundo o artigo 2.11 do Regulamento da Corte IDH, o defensor interamericano é “a pessoa que a Corte designe para assumir a representação legal de uma suposta vítima que não tenha designado um defensor por si mesma” [11].

No que concerne à sexta onda (iniciativas promissoras e novas tecnologias para aprimorar o acesso à Justiça). Na Defensoria Pública brasileira, o atendimento on-line foi muito popularizado durante a época de pandemia da Covid-19, já que em 2020 realizou mais de 13 milhões de atendimentos [12], o que fora impulsionado pelos mecanismos de atendimento à distância:

“Acompanhando a tendência global de tecnologização da assistência jurídica, 90,3% dos membros da Defensoria Pública atualmente prestam atendimento ao público por via remota. Aplicativos de mensagem (78%), e-mail (68%) e aparelhos de telefonia celular (65,5%) foram os meios de comunicação apontados como os mais utilizados, superando a tradicional comunicação por telefone (49%), assim como os aplicativos que permitem a realização de videoconferência (40,9%)” [13].

Outro exemplo prático de cumprimento da sexta onda renovatória de acesso à Justiça é o projeto Assistência Legal e Visita Virtual no Sistema Prisional, da Defensoria do estado do Maranhão, que possibilita aos reeducandos do sistema penitenciário o contato com familiares na forma de videoconferência, prestigiando a segurança, a dignidade humana e a comodidade aos serviços penitenciários [14].

Por derradeiro, a sétima onda renovatória do acesso à Justiça, que trata da desigualdade de gênero e raça nos sistemas de Justiça. Note-se que o enfoque da referida onda é a proteção de grupos sociais vulneráveis ou culturalmente vulnerabilizados. O artigo 4º, inciso IX, da LC 80/94 diz ser função institucional da Defensoria Pública “a defesa dos interesses individuais e coletivos da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado”.

Como exemplo prático desta forma de atuação, mencione-se a existência de núcleos especializados de proteção à mulher vítima de violência doméstica — nos termos do artigo 5º, da Lei 11.340/2006 — no âmbito das Defensorias Públicas estaduais, entre elas a do estado do Piauí.

Na tutela de grupos étnicos, aponte-se o projeto Vozes dos Quilombos, também da Defensoria Pública do Piauí, recentemente premiado no Conadep 2022. Segundo o site

“O Projeto, desenvolvido pela Defensoria Pública do Estado do Piauí, que foi idealizado e é coordenado pela Defensora Pública Karla Andrade Leite, tem por objetivo é estreitar laços entre a Defensoria Pública e as Comunidades Quilombolas, garantindo uma atuação satisfatória e efetiva, atendendo as demandas e necessidades sociais das comunidades tradicionais, além de atuar como intermediador, junto aos gestores públicos, na integração de políticas públicas para essas Comunidades” [15].

Vale frisar que a defesa e promoção dos interesses de pessoas “vítimas de discriminação por motivo de etnia, cor, gênero, origem, raça, religião ou orientação sexual” independe de verificação da renda [16].

Diante de todo o exposto, têm-se que a Defensoria Pública está empenhada e envolvida no cumprimento das chamadas sete ondas renovatórias do acesso à Justiça.

Fonte: ConJur

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