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“Os Notários Estão Aptos A Absorver Cada Vez Mais Esses Procedimentos De Caráter Objetivo, Que Não Tenham Litígio”

Presidente da Comissão Nacional de Notários e Registradores do IBDFAM, Marcia Fidelis Lima conversou com o CNB/RJ sobre os impactos da pandemia no Direito das Famílias

Em entrevista exclusiva ao Colégio Notarial do Brasil – Seção Rio de Janeiro (CNB/RJ), a presidente da Comissão Nacional de Notários e Registradores do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Marcia Fidelis Lima, destaca a importância dos serviços extrajudiciais para a sociedade em meio à pandemia da Covid-19. A especialista explica, ainda, os impactos do cenário pandêmico no ambiente familiar brasileiro.

Além da atuação à frente da Comissão extrajudicial do IBDFAM, Marcia Fidelis Lima é bacharel em Direito pela Universidade FUMEC, em Belo Horizonte (MG), especializada em Filosofia e Teoria do Direito e Direito das Famílias, e criadora do projeto Registrando Vidas.

Confira a íntegra da entrevista:

CNB/RJ – A pandemia causada pelo novo coronavírus trouxe inúmeros impactos para sociedade brasileira. Como avalia estes impactos no Direito da Família?

Márcia Fidelis Lima – As famílias e suas relações são reflexos das atividades humanas no contexto em que são consideradas. Situar a análise ao momento histórico em que seu objeto está inserido é primordial para avaliar impactos. Isso é verdadeiro também para as relações familiares. Os reflexos da pandemia dos anos 10-20 do século XX não podem ser considerados sob o mesmo prisma do que decorre da atual pandemia da Covid-19, 100 anos depois. A visão pluralizada do que se entende por família hoje contrasta com a exclusividade da família tradicional do século passado. Ordenamentos jurídicos totalmente diversos regem cada um dos períodos.  Não se compara o impacto do isolamento social na família contemporânea em relação ao convívio entre pais/mães e filhos/filhas – em que muitos vivem em núcleos familiares separados – com esses mesmos efeitos na família tradicional, cujos membros estariam isolados sob o mesmo teto. Não se fala em reflexo na quantidade de divórcios já que naqueles tempos o casamento só se dissolvia com a morte. Por outro lado, não existiam no século passado as possibilidades tecnológicas que nos aproximam virtualmente. Hoje, a tecnologia foi o bálsamo que nos permitiu encontros à distância.

CNB/RJ – Quais são os principais desafios das famílias brasileiras praticamente um ano após o início da pandemia?

Márcia Fidelis Lima – Portanto, avaliar o impacto de uma tragédia biológica do tamanho da pandemia da COVID-19 no Direito das Famílias requer considerar o direito de convívio entre pais/mães e seus filhos e filhas; a diminuição de renda podendo refletir no pagamento de alimentos; o convívio conjugal em tempo integral; o cuidado com os filhos também em tempo integral e sem a presença de auxiliares que também devem ficar em isolamento; a educação à distância; a falta de convívio dos adolescentes com seus amigos, colegas da escola e professores. Dentre muitos pontos, os exemplos citados são causadores de tensão emocional que, potencialmente, desencadeiam ou agravam problemas psicológicos em todos os envolvidos. A proximidade física entre os membros de uma mesma família passa a ser uma preocupação constante no meio jurídico envolvido com as relações familiares. E essa preocupação cresce exponencialmente quando a necessidade de distanciamento se prolonga no tempo e, pior, quando acompanhada do luto. Para além de tudo isso, dificuldades práticas levaram a discussões jurídicas intensas, mesmo que facilitadas pelos incontáveis encontros virtuais – as nossas conhecidas lives. Como permitir o deslocamento de crianças e adolescentes sob guarda compartilhada? Como evitar a contaminação de um núcleo familiar pelo outro quando filhos e filhas vêm e vão de um endereço ao outro? Existem ainda reflexos numericamente menos expressivos, mas que deixam danos para os familiares.

CNB/RJ – Quais exemplos poderia dar sobre os impactos práticos da pandemia no âmbito do Direito da Família?

Márcia Fidelis Lima – Homens e mulheres que sonharam ou até programaram cerimônias e grandes festas de casamento tiveram que escolher entre adiar o sonho ou realizá-lo apenas perante as testemunhas obrigatórias ou, até mesmo, virtualmente. Recém-casados no início da pandemia se depararam com a imposição de convívio integral com alguém ainda estranho, pela imposição do trabalho remoto a ambos. Gestações programadas que tiveram que ser adiadas. Nascimentos durante a pandemia, impondo a casais, muitas vezes inexperientes por ser seu primeiro filho, os cuidados com o bebê sem nenhum auxílio. Avós, tios, tias e até irmãos sendo privados até de conhecer presencialmente o bebê que nasceu durante a pandemia. Parturientes privadas do cuidado do parente próximo após o parto. Casais de namorados, que tiveram que escolher entre o distanciamento ou correrem o risco de se isolarem juntos e terem seu relacionamento considerado união estável. Parentes tendo que outorgar poderes a estranhos para comparecerem ao serviço de registro civil para declarar e prestar informações pessoais para o registro do óbito do ente querido, já que todos os parentes próximos tiveram contato com o doente e ficam obrigados à quarentena. São dificuldades, muitas vezes, impensadas por quem não está vivendo essa realidade. Os profissionais ligados ao Direito das Famílias, entretanto, tiveram que criar soluções para cada uma dessas vivências. Muitas delas com sucesso tranquilizador. Algumas, contudo, ainda gerando conflitos.

CNB/RJ – Entre as consequências, já se percebeu o aumento no número de divórcios no País. Quais as causas que estão levando a este crescimento?

Márcia Fidelis Lima – É incrivelmente grande a quantidade de casais que alegam desgaste no casamento em função do convívio com o outro em tempo integral. E são queixas recíprocas. As pessoas estão se enxergando de perto demais. E as relações humanas não são fáceis. Para algumas pessoas, esse excesso de presença é devassador. Somado a isso, não se está falando em viagem de férias, em lua de mel, que são momentos em que a presença integral é agradável, desejada. Vive-se momentos de pressão pelo acúmulo de funções domésticas e profissionais, além do cuidado pessoal e em tempo integral com filhos. Portanto, pelo que venho acompanhando, essa é a maior causa apresentada por casais cuja decisão pelo divórcio ocorreu durante a pandemia. Dentre eles, alguns já pensavam em divórcio, mas esse panorama foi catalizador da decisão final. Contudo, há que se pensar no aumento do divórcio sob duas vertentes: por um lado considerando-se a decisão de findar-se o casamento; e por outro lado, a formalização do divórcio. Ambas trazem consequências tanto para as famílias envolvidas quanto para as atividades jurídicas envolvidas com o Direito das Famílias.

CNB/RJ – Atos notariais, como o divórcio, já podem ser feitos pela plataforma online e-Notariado. Como avalia esta inovação e seus impactos no aumento dos números de dissoluções matrimoniais?

Márcia Fidelis Lima – Tratando-se de estatísticas provenientes dos atos efetivamente concretizados junto às notas e registros, o objeto da análise será o da segunda vertente, ou seja, os divórcios formalmente concretizados, independentemente da quantidade de famílias que se desfizeram de fato em função da pandemia. Por essa ótica, a possibilidade de se divorciar através do e-Notariado, sem sair de casa, foi o que desencadeou o aumento dos números.

CNB/RJ – Outros atos notariais também registraram aumento, como a constituição de uniões estáveis, testamentos, inventários e doações. A crise de saúde pública fez o brasileiro pensar no planejamento sucessório?

Márcia Fidelis Lima – A morte é a nossa única certeza. Também é certo que, ressalvadas situações atípicas, não vivemos pensando que vamos morrer, apesar de sabê-lo. Uma pandemia tão avassaladora, de alcance mundial, com milhões de mortes em poucos meses, tem um efeito mais assustador do que ser diagnosticado com uma doença que lhe permite apenas um curto período de vida pela frente. A doença acomete o doente e é ele quem perde a vida. As pessoas ao redor sofrerão o impacto, mas não estão no mesmo risco de morte. Além de toda comoção social, das preocupações e impactos ocasionados pela necessidade de tomar medidas preventivas às quais não estamos habituados, tendemos a organizar a vida pensando nos efeitos de nossa morte, sem deixar de avaliar que quem nos cerca também pode adoecer. E morrer. É bastante natural que queiramos direcionar providências que possam garantir minimamente as pessoas que eventualmente possam ficar desassistidas com a nossa morte. Inventários e doações podem ter como causa também outras preocupações.

A pandemia também trouxe para o mundo todo um impacto econômico inevitável. Muitas pessoas perderam o emprego. Formalizar transações, como doações e até inventários, pode viabilizar o uso de um patrimônio parado com vias de manter o sustento da família ou mesmo permitir que possam isolar-se com mais tranquilidade financeira. Contudo, essas providências somente foram possíveis e tiveram um aumento tão significativo em função da possibilidade de praticar todos esses atos sem prejudicar o distanciamento social. As pessoas puderam solucionar essas questões no conforto de seus lares, mantendo-se isoladas e sem risco de contaminação. A plataforma e-notariado foi fundamental.

CNB/RJ – Ao se trabalhar com o Direito de Família, qual a importância do planejamento sucessório e quais conflitos podem ser evitados nesse sentido?

Marcia Fidelis Lima – Planejamento sucessório não é uma preocupação de muitos cidadãos no nosso País, sendo mais comum dentre os de maior condição patrimonial. Pode-se perceber essa realidade até mesmo ao se observar que a definição de regime de bens para o casamento através de pacto antenupcial é mais comum a quem já tenha patrimônio constituído. Contudo, a maior capilaridade da informação e o aumento substancial de aulas e palestras virtuais, ao alcance de um público maior, vem mudando o perfil de quem busca organizar desde o início suas questões patrimoniais. E quando se fala em planejamento sucessório, há que se incluir não apenas o direcionamento dos bens após a morte através de testamentos, mas durante a administração do patrimônio por toda a vida. O regime de bens escolhido para o casamento impactará no direcionamento do patrimônio com a abertura da sucessão. Da mesma forma, os cuidados na redação de contratos de aquisição e alienação de bens, inclusive seguros de vida e planos previdenciários. Administrar e organizar o patrimônio, documentando com cuidado de forma a direcionar as vontades, dentro dos limites da legítima, é uma maneira eficaz de decidir em vida a destinação que será dada aos bens, observada a legislação, diminuindo riscos de desassistência a quem se deveria proteger. Somado a isso, o testamento irá definir, com eficiência, a destinação do patrimônio do autor da sucessão, de acordo com a sua vontade.

CNBRJ – O fenômeno da desjudicialização ganhou relevância nos últimos anos no Brasil. Qual a sua opinião sobre a prática de serviços consensuais pelos Cartórios de Notas?

Marcia Fidelis Lima – A breve desjudicialização completa do divórcio, como ato de vontade que objetiva dissolver o casamento, é corolário da atual visão pluralística de família e do fim do antigo vínculo obrigatório entre parentesco e conjugalidade. A judicialização obrigatória do divórcio quando o casal tem filhos menores de 18 anos deixa de ter relevância à medida que as questões ligadas à filiação sejam desvinculadas da relação conjugal existente entre os pais, as mães ou o pai e a mãe.

CNBRJ – Como avalia a possibilidade de ampliação dos atos de divórcio em cartório, mesmo nos casos com menores envolvidos?

Marcia Fidelis Lima – A proteção dos interesses da criança e do adolescente deveria ser discutida em ações autônomas, desvinculadas do divórcio. Na mesma medida em que as pessoas se casam por vontade própria, administrativamente, sem que, por regra, dependam de qualquer autorização, assim também deveria ser o divórcio que, aliás, refere-se a pessoas presumivelmente mais amadurecidas, já que o casamento ocorreu quando tinham menos idade, independentemente do tempo de casados. Isso não quer dizer que não se deve discutir questões como alimentos para os filhos, direito de visitação e em que residência viverá, em função do divórcio dos pais. Uma atuação interessante que se tem visto em muitos juízos de primeira instância nas ações de divórcio é a homologação – ou até mesmo decretação – do divórcio de imediato, e o seguimento do feito para as demais discussões, incluindo partilha de bens, alimentos entre eles e todos os interesses dos filhos. Na esfera extrajudicial, o que se pleiteia e que já é bastante aceito no mundo jurídico, é que se possa lavrar escrituras de divórcio quando já houve discussão judicial dos interesses dos filhos e os envolvidos declararem estar observando o que foi determinado no processo.

Os notários e registradores estão aptos a absorver cada vez mais esses procedimentos de caráter objetivo, que não tenham litígio, e que tumultuam desnecessariamente o Poder Judiciário. São profissionais do direito que já lidam com atos e fatos jurídicos da vida civil e negocial do cidadão, assegurando sua identificação e atual qualificação. São especializados em tratar das relações em que estejam envolvidos o estado da pessoa natural, a natureza jurídica dos entes personalizados, as relações patrimoniais e não patrimoniais que os vinculam. O tabelião de notas, ao formatar essas relações, instrumentalizando as manifestações de vontade às regras jurídicas pertinentes, apõe a sua fé pública garantidora da autenticidade do que está documentado. Além de garantia de segurança jurídica, é um método eficaz de prevenção de conflitos. A atuação de notários e registradores durante esses duros meses desde março de 2020, uma vez mais, demonstra a importância do seu trabalho, ainda mais evidenciado diante de novas configurações sociais e alterações nas relações interpessoais. O implemento imediato do E-Notariado – uma ferramenta considerada um divisor de águas para o tabelionato de notas, e para todo o serviço extrajudicial – demonstra como tabeliães e oficiais de registro oferecem um serviço de excelência mesmo diante de desafios aparentemente intransponíveis.

CNB/RJ – Um recente filme da plataforma Netflix tratou sobre os desvios da curatela nos Estados Unidos. Como avalia o serviço das Diretivas Antecipadas de Vontade como instrumento para casos de moléstia grave?

Marcia Fidelis Lima – As Diretivas Antecipadas de Vontade permitem ao cidadão fazer valer a sua vontade e a sua capacidade de decisão quando não mais pode fazê-lo de própria voz. O cidadão irá manifestar as providências que gostaria que fossem tomadas, ou que se deixasse de tomar, em circunstâncias de um adoecimento que o impeça de manifestar-se pessoalmente. Pode-se, preferencialmente com auxílio de um médico, delinear um tratamento ou dispensar sua utilização quando objetivar pura e simplesmente a postergação artificial da vida. Essa providência ganha uma importância maior com a pandemia da COVID-19 na medida da imprevisibilidade do quadro de agravamento da doença. Ou seja, o cidadão não sabe se será contaminado; em sendo, não sabe se desenvolverá a doença; desenvolvendo, não sabe se o quadro irá se agravar de forma imediata, sem que ele tenha oportunidade de se manifestar quanto ao tratamento que lhe será dispensado. A decisão ficará a cargo dos familiares ou, até mesmo, dos profissionais de saúde responsáveis pelo paciente caso não haja tempo de contatar a família. A circunstância de depender de decisões relevantes vindas de terceiros quanto a situações tão pessoais é que se pretende evitar deixando expressas as vontades próprias. Isso é especialmente importante – como demonstra a ficção e que também retrata uma realidade comum – quando as pessoas envolvidas resolvem se valer da incapacidade do paciente para causar-lhe danos, sendo mais comuns os danos patrimoniais.

CNB/RJ – Como avalia a importância da atividade extrajudicial para a sociedade?

Márcia Fidelis Lima – A atividade notarial e registral, em sua configuração constitucional de serviço público exercido em caráter privado, está presente na sociedade com atribuições que vão muito além de redigir, relatar fatos e perpetuá-los no tempo e no espaço. O notário e o oficial de registro garantem, através de seus atos, autenticidade e segurança jurídica aos negócios e ao exercício da vida civil do cidadão. A identidade, a vontade e sua instrumentalização, a forma jurídica adequada e até a imposição da verdade real perante as relações jurídicas são garantias provenientes da fé pública dessa atividade jurídica que tem credibilidade milenar. Legalmente considerada dentre as atividades essenciais à vida em sociedade no Brasil, a atividade vem demonstrando, principalmente neste período de tragédia histórica da civilização, sua contribuição para a manutenção de relações jurídicas seguras, mesmo diante do caos. Não se pode ser cruel a ponto de dizer que uma pandemia tão avassaladora possa ter algo de positivo. Qualquer positividade advinda durante a pandemia (e não em decorrência dela) é obra da capacidade humana de se adaptar às condições mais adversas que lhe são impostas. Solidariedade, empatia e resiliência foram as características humanas que não nos permitiram a todos sucumbir. A atividade notarial e registral, durante a pandemia, deparou-se com a incumbência de garantir ao cidadão a necessária tranquilidade de que, mesmo em momentos de tamanha provação, seus negócios e sua cidadania permaneceram seguros, para que pudessem dedicar-se ao que realmente importa a cada um de nós e a todos nós, que é a vida.

Fonte: Assessoria de Comunicação – CNB/RJ

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